O mundo inteiro hoje está de olho nos títulos do governo americano, mas é na Argentina que vive um momento de definição mais imediatamente dramático. Se muitos saírem comprando dólares, no primeiro dia do fim do controle cambial, a cotação da moeda baterá na faixa máxima de 1,4 mil pesos e a do governo de Javier Milei entrará em baixa, talvez precipitando uma crise semelhante à tantas vezes vivida pelo país.
O passado é, talvez, o maior inimigo de Milei. Com todo o histórico de crises similares – inflação, desvalorização da moeda, esgotamento das reservas e derrota, nas urnas ou nas ruas, do governo, seja qual for -, os argentinos trazem gravado na memória coletiva o impulso de comprar dólares para se proteger.
O “cepo”, como ficou conhecido o controle, foi levantado, com algumas restrições, como a permanência do imposto de 30% sobre compras feitas em viagem ao exterior. Mas a adoção do câmbio livre deveria abrir caminho a uma Argentina mais “normal” e antenada com os princípios libertários do governo.
APROVAÇÃO EM QUEDA
Em vez disso, existe uma forte tendência à desconfiança. “Há apenas três meses, o risco país desmoronava, a inflação caia de maneira constante e as reservas cresciam, empurradas por um branqueamento (de capitais) bem sucedido”, escreveu no Infobae o analista Ernesto Tenenbaum. “Desde janeiro, tudo virou. O risco país subiu forte, a inflação se reaqueceu, as reservas caíram a níveis perigosos”.
Paralelamente, também houve uma queda na aprovação a Milei. O apoio da opinião pública é o grande guarda-chuva sob o qual ele teve condições de desfechar o plano de cortes radicais de gastos e negociar acordos políticos para aprovar projetos que pareceriam impossíveis em qualquer outro país.
Segundo uma das últimas pesquisas, as linhas se cruzaram em fevereiro e hoje a aprovação ao presidente ultralibertário está a 45,8%, contra 51,5% de desaprovação.
Entre os motivos: uma certa exaustão com os sacrifícios demandados para resetar o país, o sentimento de que a inflação continua alta, o receio de que o dólar vai subir. Uma das pesquisas dá 63,3% de “ruim” ou “muito ruim” para a economia.
MILEI E A ‘MULHERZINHA’
Todas as associações empresariais do país fizeram manifestações de apoio ao fim do controle cambial. Milei, obviamente, ressaltou os progressos alcançados: “Depois de um duro primeiro ano de trabalho, podemos dar por concluído o processo de saneamento macroeconômico argentino, tendo levado ordem a estes três pilares fundamentais: ordem fiscal, ordem cambial e ordem monetária”.
“Cada um dos 46 milhões de argentinos teve que atravessar uma prova de fogo. Tiveram a coragem de escolher a liberdade em lugar da servidão e abandonaram a lenta agonia em que estávamos mergulhados há quase quinze anos para tomar o gole amargo de uma só vez e para sempre”.
O problema, claro, é que no laboratório da rearrumação econômica sem precedentes ainda tem muitos goles amargos a serem tomados.
Milei se dá bem com a “mulherzinha” do FMI – segundo a atroz expressão de seu desafeto do outro lado da fronteira -, a economista búlgara Kristalina Georgieva, e o acordo de 30 bilhões de dólares ancorou o fim do controle cambial, mas há uma longa lista de exigências, incluindo reforma tributária, desregulamentação do mercado energético, avanço do processo de privatização de empresas públicas. A receita de saneamento é conhecida e muitas das condições Milei cumpriria de qualquer maneira. A questão é ter condições políticas para isso.
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA
“Na segunda-feira, os argentinos amanhecerão sem o cepo para a compra de dólares”, escreveu no La Nación o colunista Joaquin Morales Solá. “Então veremos se a síndrome de abstinência da moeda americana (o bem mais valorizado de todo argentino que se preze) é maior do que a confiança no governo de Javier Milei ou se, em lugar disso, acontecerá o contrário e o preço do dólar se manterá nos níveis da sexta-feira, como preveem vários economistas”.
Segundo o colunista, o resgate do FMI aconteceu num momento tão fundamental para Milei que “um economista objetivo se animou a dizer que nesse momento a Argentina é mais previsível do que o volátil mundo construído por Donald Trump”.
Brincadeirinha, claro.
Na última experiência de fim do controle cambial, o presidente era Mauricio Macri e o habitual ciclo de descontrole o obrigou, no melancólico fim de governo, a restaurar o “cepo”.
Milei se transformou num símbolo mundial do ultraliberalismo e qualquer coisa que aconteça na Argentina é vista sob este único e exclusiva prisma – um erro que adversários e simpatizantes cometem, ignorando as múltiplas complexidades envolvidas. Nesse dia de ou vai ou racha, esta simplificação estará mais presente do que nunca.
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