Em uma democracia plena, Executivo, Legislativo e Judiciário são poderes separados, executando de maneira autônoma o serviço que lhes cabe: respectivamente, governar, legislar e aplicar as leis do país. Nas democracias não tão plenas assim, vez por outra acontecem interferências, devidas ou indevidas, que não chegam a comprometer a integridade democrática. Ou melhor, não chegavam. Triste resultado da lavra de autocratas que viceja nesses tempos, o Poder Executivo vai virando, nos países que eles dominam, uma força que suga a independência do Legislativo e, principalmente, do Judiciário, reformado a seu gosto para lhes dar o que mais querem: poder total.
Em demonstração recente desse movimento, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, entrou em choque direto com a Suprema Corte e pior: chegou a desafiar uma deliberação sua, para depois voltar atrás. O embate teve origem na demissão de Ronen Bar, diretor do serviço de segurança interna, o Shin Bet, oficialmente por incompetência, mas na prática por ter mandado investigar assessores do governo suspeitos de corrupção. A oposição levou o caso à Suprema Corte, que ordenou o congelamento de qualquer providência até segunda ordem. O primeiro-ministro foi em frente e nomeou um substituto, mas depois recuou. Mesmo assim, deu sinais de que pode não acatar uma determinação para reintegrar Bar — passo que mergulharia Israel, em plena operação militar em Gaza, em uma crise constitucional inédita.
Longe de ser um episódio isolado, a crise se insere na campanha que Netanyahu empreende desde que voltou ao poder, em 2022, para controlar o Judiciário através de uma reforma que, entre outras coisas, reduz drasticamente a competência da Suprema Corte para anular decisões do Executivo que julgue inconstitucionais. “Os sinais não poderiam ser mais claros. Quem se preocupa com a democracia precisa levar muito a sério esse tipo de discurso”, afirma Suzie Navot, professora de direito constitucional do Israel Democracy Institute. No atacado, o primeiro-ministro quer se livrar de limites incômodos. No varejo, até as pedras douradas de Jerusalém sabem que sua meta é escapar dos processos por corrupção que enfrenta na Justiça.

Enfraquecer o Judiciário, seja preenchendo tribunais com juízes alinhados ao poder, seja modificando leis que limitam a autoridade do Executivo, seja com uma mistura de tudo isso, é receita clássica seguida pelos autocratas de plantão — de Vladimir Putin, na Rússia, a Viktor Orbán, na Hungria, e Recep Tayyip Erdogan, na Turquia. No poder há mais de duas décadas, Erdogan implementou uma série de mudanças constitucionais para se eternizar no poder, mas foi sobretudo depois de uma tentativa de golpe em 2016 que promoveu o expurgo de milhares de juízes e tomou conta do aparato judicial. Tomou e provou que o fez: em março, seu principal rival, Ekrem Imamoglu, prefeito de Istambul, foi acusado de corrupção, detido, interrogado, encarcerado e destituído do cargo em apenas quatro dias.
Há quinze anos no governo, Orbán — que acaba de receber com honras em Budapeste o israelense Netanyahu, dando uma banana para a ordem de prisão decretada pelo Tribunal Penal Internacional (do qual aproveitou para retirar a Hungria) — aparelhou tribunais constitucionais com juízes simpáticos ao regime e forçou centenas a se aposentar. “Autocratas modernos não agem sozinhos. Suas conexões são complementadas e sustentadas por um quadro variado de especialistas jurídicos, estrategistas e acadêmicos, bem-educados e cosmopolitas”, alerta Cecilia Menjívar, socióloga da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Desde que retornou à Casa Branca, em janeiro, Donald Trump, notório admirador de figuras imperiais, também adotou o conflito com o Judiciário como estratégia, testando (e até extrapolando) limites e inundando o sistema com ordens executivas que vão além de sua competência. Em um ato sem precedentes, a Casa Branca despachou imigrantes venezuelanos para El Salvador, desobedecendo à ordem de um juiz federal que Trump classificou de “esquerdista lunático”. Além de intimidar juízes, o presidente declarou guerra aos grandes escritórios de advocacia que tenham defendido causas contrárias ao governo, em geral, e a ele, pessoalmente. Ameaçados de perder contratos federais e causas de grandes empresas, alguns cederam rapidamente e se comprometeram a não desafiar as diretrizes da Casa Branca. Quando até advogados americanos — praticamente um poder paralelo — se curvam abertamente ao Executivo no país-símbolo da democracia, a previsão é de chuvas e trovoadas que podem engrossar ainda mais a enxurrada de autoritarismo.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939
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