O motor das migrações humanas é sempre a busca por vida melhor. E assim foi com os brasileiros que, atolados na crise econômica dos anos 1980, foram maciçamente para os Estados Unidos, semeando a ideia de arranjar emprego em dólar e galgar posições na escala social. Nunca mais pararam de ir, partindo de vários pontos do país, com uma curiosa concentração em Governador Valadares, cidade no leste mineiro que conta com toda uma engrenagem para facilitar o sonho americano e tem até como cartão-postal uma Praça do Emigrante. O município de 250 000 habitantes contribui ano a ano com o contingente de 2 milhões de portadores de passaporte verde-amarelo vivendo em solo americano, maior lá do que em qualquer outro canto do globo — cerca de 10% deles em situação ilegal, à espera de documentos que deem aval à sua permanência.

Agora, com o endurecimento das regras impostas pelo governo de Donald Trump, o plano de conseguir o tão desejado green card e fazer a América teve de ser, ao menos por ora, engavetado — de forma especialmente dolorosa para o grupo dos que foram postos em um avião e despachados para o Brasil. Desde o início do ano, cinco voos trouxeram 621 brasileiros que, algemados (o que a lei prevê em certos casos) e expostos a más condições durante a viagem (o que a lei não prevê), foram sumariamente deportados, mesmo que muitos ainda aguardassem audiências judiciais na esperança de obter a papelada necessária para ficar.

A ICE, a temida polícia migratória dos Estados Unidos, está indo atrás desses e de outros estrangeiros, com permissão para prendê-los em igrejas, escolas e hospitais. O mineiro de Contagem Erionaldo Sant’Ana, 50 anos, estava a caminho do trabalho, no estado de Massachusetts, quando foi abordado por agentes que o conduziram direto à prisão. Ele morava ali há dois anos com a mulher, Rosineila, tentando se legalizar enquanto tirava o sustento como pedreiro, uma virada de página que envolveu a venda de sua casa no Brasil e o uso de economias, um investimento de uns 150 000 reais. “Fui algemado nos pés, mãos e cintura, e tratado como criminoso”, diz ele, que, de volta a Minas Gerais, passa pela angústia de não ter notícias da mulher, ainda detida nos EUA. “As repatriações ocorriam antes de Trump, com Obama e Joe Biden, mas a abordagem se tornou muito mais agressiva, sem espaço para a pessoa se defender”, afirma Daniel Toledo, especialista em migração internacional, que já ajudou brasileiros na diáspora.
O sonho americano não vem se desfazendo apenas para quem precisa abruptamente regressar, mas também para aqueles que planejavam fazer as malas e recuaram. O baque é sentido em graus elevados em Governador Valadares, apelidada de “Valadólares”, onde a onda rumo aos Estados Unidos se originou no cenário pós-Segunda Guerra, quando engenheiros dos Estados Unidos afluíram à região para ampliar uma estrada de ferro. Também uma rica reserva de mica, minério essencial à indústria elétrica, era um atrativo daquelas bandas mineiras. Um certo dia, abriu-se por lá uma escola de inglês, o que estimulou intercâmbios e, mais tarde, a revoada de brasileiros que queriam tentar uma vida nova.

Não é nenhum exagero falar em revoada. Segundo o IBGE, 82% das casas valadarenses registram pelo menos um membro que cruzou a fronteira americana e não retornou. Mas agora, com a vigilância mais acirrada, a indústria que se movimenta em torno dos migrantes — agências que cuidam de vistos, advogados especializados — anda parada. Também a procura por coiotes, aqueles que ajudam a atravessar ilegalmente a fronteira do México com os Estados Unidos, cobrando na casa de 40 000 reais por cabeça, perdeu fôlego. “Por enquanto, o desejo de ir embora está congelado”, resume um conhecedor dessa antes profícua atividade econômica.

Relatos ouvidos pela reportagem de VEJA ajudam a dar face humana aos desdobramentos da política migratória do governo Trump — que não foi o primeiro a apertar o cerco, mas é quem está se esforçando em fazê-lo de maneira mais sistemática e visível, como uma bandeira. Atingiu em cheio os planos da professora Sandra Souza, 36 anos, que morava perto de Governador Valadares e, em 2021, contratou um coiote e pisou em solo americano ao lado do marido e dos dois filhos pequenos. “Gastamos mais de 20 000 dólares com advogados, sempre acreditando que encontraríamos um caminho legal para ficar”, conta ela, no rol dos deportados. O choque de realidade veio em janeiro, quando Sandra compareceu a um encontro com autoridades acreditando ser mais uma etapa na batalha para permanecer por lá. “Era aniversário do meu caçula, diagnosticado com autismo, e eu levei os documentos médicos dele, que estava em vários tratamentos. Meu mundo desabou quando disseram que seríamos deportados naquele mesmo dia”, lembra. “A ideia de que os Estados Unidos são uma nação acolhedora está em contradição com as duras políticas contra os migrantes, o que reforça quão ilusório pode ser o sonho americano”, observa a filósofa Aline Rosa, da UFRJ.

Mesmo os brasileiros que vêm escapando das garras da ICE tiveram sua experiência profundamente transformada. Até em estados democratas na Costa Leste, onde os republicanos historicamente perdem de lavada, um clima de medo se instaurou entre forasteiros de todos os estratos de renda — inclusive nas universidades, na mira trumpista. Pelo país, pipocam casos de vizinhos que denunciam vizinhos, acusando a presença estrangeira na porta ao lado. “Comecei a me sentir em uma guerra”, compara o engenheiro M.A., 32 anos, outro de Governador Valadares, que passou a se sentir seguro apenas em casa ou no trabalho. De uns dias para cá, tem dado uma saída, mas nunca se demora. Não é o único a viver um cotidiano de alto estresse. “Querem que a gente vá embora por medo, pelo pânico de perder os filhos, de perder tudo. Deixei de sair de casa por me sentir insegura”, relata T.F., 32 anos, que é faxineira em Connecticut e está em processo de se legalizar. Por precaução, ela resolveu tirar os filhos das aulas extracurriculares.
As seguidas repatriações e o ambiente de hostilidade têm feito muitos repensarem o plano inicial, mesmo aqueles que já estavam adiantados na preparação da viagem — do ponto de vista logístico e também psicológico, uma vez que a decisão de empacotar tudo envolve se afastar do terreno conhecido. Até gente determinada tem parado para pensar duas vezes diante do depoimento de famílias separadas, do confisco de bens e das dificuldades de recorrer à Justiça em chão americano. O consultor de vendas L.S., 41 anos, de Belo Horizonte, estava tentando reunir a papelada para embarcar em situação legal com a filha, mas desanimou. “Estou procurando outro lugar para viver, vendo o que é mais viável para mim fora do Brasil”, diz. Ele se junta a pessoas de muitas outras nacionalidades — até àquelas que tinham direito a asilo garantido pela situação política de seus países, como hondurenhos e venezuelanos. As consequências na mudança de rota de tanta gente se fazem sentir na desaceleração do fluxo na outrora congestionada fronteira mexicana — houve ali uma queda de quase 100% de pessoas flagradas tentando entrar. Afinal, ninguém quer ver o sonho se converter em pesadelo.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939
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