O mundo das crianças hoje é muito diferente do que era para seus pais. Uma cena da popular série da Netflix “Adolescência” mostra o quão grande é essa diferença.
No segundo episódio, o detetive Luke Bascombe (Ashley Walters) visita uma escola secundária para investigar por que Jamie Miller (Owen Cooper), de 13 anos, supostamente matou sua colega de classe Katie. Com base nas interações dos dois no Instagram, ele presume que eram amigos ou até mesmo tinham um relacionamento.
Isso até que o próprio filho de Bascombe — também aluno da escola — diz a ele que está completamente enganado.
Os emojis aparentemente inofensivos que Katie comentou nas postagens de Jamie eram, na verdade, um código de bullying. O emoji de dinamite representa uma “pílula vermelha” explodindo, uma referência à “manosfera”. O símbolo 100 é outro código da comunidade masculina, aludindo a uma teoria dentro desses círculos de que 80% das mulheres são atraídas por apenas 20% dos homens.
Em outras palavras, Katie estava insinuando que Jamie era um “incel”.
Para Bascombe e os outros adultos, a revelação é chocante — eles claramente não fazem ideia das ideias nocivas às quais as crianças sob seus cuidados estão expostas e de como isso influencia suas vidas.
Essa desconexão está no centro de “Adolescência”, que, desde sua estreia, tem gerado discussões sobre a visão dos jovens sobre as mulheres, a cultura incel, o uso de smartphones e muito mais.
A minissérie britânica começa como um drama policial, mas ao longo de seus quatro episódios, investiga o que poderia ter levado um garoto aparentemente inocente a cometer algo tão terrível.
As respostas que encontra não são tão simples.
A CNN conversou com Jack Thorne, co-criador da série, sobre sua jornada pelos cantos mais obscuros da internet, a raiva masculina jovem e o que ele espera que os pais aprendam com a série.
A conversa foi editada para concisão e clareza.
A série aborda muitos temas atuais: manosfera, masculinidade moderna, bullying online. O que te motivou a contar essa história?
Tudo começou com meu amigo (e co-criador da série) Stephen Graham. Ele me ligou e disse que devíamos escrever um programa sobre garotos que odeiam garotas e sobre crimes com facas, que são um grande problema aqui no Reino Unido.
A partir disso, começamos a falar sobre a raiva masculina, nossa própria raiva, nossa própria crueldade. Tentamos construir um retrato complexo da masculinidade: como fomos moldados e como os adolescentes de hoje estão sendo moldados de formas semelhantes, mas também com muitas diferenças.
Esses temas eram algo que já te preocupava há algum tempo?
Sim, mas de certa forma, eu os havia deixado de lado.
À medida que me aprofundei para tentar entender, encontrei muitas coisas que me surpreenderam — ideias que, se eu as tivesse ouvido no momento errado, poderiam ter me levado por caminhos que agradeço por não ter seguido.
A ideologia por trás da cultura incel é atraente porque dá sentido a muitos sentimentos: isolamento, baixa autoestima, sensação de não ser atraente. Ela diz que há um motivo para o mundo estar contra você: porque ele foi construído sob uma perspectiva feminina e as mulheres detêm todo o poder.
Essas ideias sugerem que você deve se aprimorar, ir à academia, aprender a manipular e a causar danos.
Como foi o processo de pesquisa para criar o personagem Jamie?
Explorei muitos cantos obscuros da internet, como Reddit e 4chan, e alterei meu algoritmo. Criei várias contas falsas nas principais redes sociais e comecei a seguir as pessoas óbvias. Essas pessoas me levaram a outras menos óbvias, e essas eram as que eu achava mais interessantes.
Nenhum garoto de 13 anos realmente consome Andrew Tate. O que eles consomem são influenciadores de games, TV ou música que foram influenciados por ele e agora disseminam suas ideias de maneira diferente. Esse nível da cascata foi onde concentrei minha atenção para entender como Jamie foi moldado.
Havia uma pergunta central que vocês queriam responder?
Por que Jamie fez isso? Sempre dissemos: “Isso não é um ‘quem matou?’, mas um ‘por que matou?’”.
É por isso que, no segundo episódio, vamos para a escola — porque, se não víssemos o sistema educacional, não entenderíamos o protagonista corretamente. Se não víssemos como seus colegas interagem, não entenderíamos. No terceiro capítulo, tentamos entender como sua mente funciona e o que ele absorveu.
No quarto episódio, chegamos ao ponto mais complexo. Não queremos simplesmente culpar os pais por tudo, mas eles são parcialmente responsáveis. Como eles lidam com essa questão de responsabilidade? E quantas obrigações devem assumir?
Você explorou a descida de Jamie para a misoginia violenta de várias perspectivas: escola, família, redes sociais. Onde ele errou?
Existe aquela frase: “É preciso uma aldeia para criar uma criança.” Também é preciso uma aldeia para destruí-la — e Jamie foi destruído.
Ele foi prejudicado por um sistema escolar que não o ajudou. Por pais que não o enxergavam de verdade. Por amigos que talvez não tenham conseguido alcançá-lo da forma que ele precisava. Pela própria química do seu cérebro. E pelas ideias que consumiu. Todos esses fatores estão em jogo.
Você tem um filho pequeno. Como lida com essas questões como pai?
Ainda não chegamos a esse ponto. Ele está prestes a fazer 9 anos e gosta de “Os Gremlins” e Roald Dahl. Ainda não se interessa por celulares, vlogs ou blogs.
A questão é o que faremos quando a pressão começar. Quando ele for para o ensino médio e 80% da turma tiver um smartphone, e ele quiser um também? Quando os colegas levarem o celular para a cama, e ele quiser fazer o mesmo?
Isso me apavora. A solução talvez esteja em ações coletivas, não individuais. Por exemplo, grupos de pais discutindo essas questões para que, quando nossos filhos chegarem aos 11 anos, vários deles ainda não tenham celulares — e negar um celular ao meu filho não seja tão terrível quanto poderia ser.
O que precisa mudar para evitar a radicalização de jovens?
Precisamos encontrar uma maneira de lidar com as redes sociais. Como fazer isso quando as grandes empresas não vão se regular sozinhas?
No Reino Unido, estamos tentando discutir com o governo sobre a idade digital de consentimento. Na Austrália, menores de 16 anos são proibidos de usar redes sociais, e cabe às empresas garantir esse cumprimento. Espero que possamos começar a discutir isso por aqui. Mas como resolver isso nos Estados Unidos agora? Não faço ideia.
Hoje mesmo, li sobre um grupo de pais em Kent (Inglaterra) que estão trabalhando juntos para evitar que seus filhos tenham smartphones nessa idade crucial. Isso pode ser enorme, mas é um problema muito, muito complicado, que exige soluções igualmente complexas.
Cada episódio foi filmado em um único plano-sequência. Como isso afetou a narrativa?
Não foi minha decisão. Foi algo que o diretor Phil Barantini e Stephen Graham propuseram, e fiquei muito animado com a ideia.
(Graham) me disse que há uma regra para filmagens em plano-sequência: a câmera não pode ir a lugar nenhum sem um personagem humano. Isso nos forçou a encontrar maneiras de contar várias histórias ao mesmo tempo, mantendo a atenção do público.
Isso também exigiu uma abordagem mais subjetiva da história. Normalmente, uma narrativa oferece ao público o máximo de informações possíveis — cortando para a família da vítima, para o processo legal, para o detetive lidando com a faca desaparecida. Mas aqui, não podíamos mudar de tempo e espaço tão rapidamente.
Esse formato tirou o público da zona de conforto e os deixou inquietos — e isso jogou a nosso favor.
O que você espera que os espectadores levem da série?
Ouçam as crianças. Elas estão muito vulneráveis agora e precisam de vocês. Isso vale para todos: pais, professores, políticos. Os jovens estão sendo excluídos e estão sofrendo muito. Precisamos ajudá-los, porque eles estão em apuros.
Não há respostas simples, mas a principal é: deixem as crianças falarem. Ou descubram um jeito de fazê-las falar. Só assim poderemos ajudá-las.
Adolescência: Série mais vista na Netflix gera debate nas redes
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