O filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, e o livro homônimo, de Marcelo Rubens Paiva, funcionaram como gatilho da memória que acordou o Brasil para um momento obscuro da sua história recente. O Oscar 2025 conquistado por Walter Salles na categoria de Melhor Filme Internacional estimulou psicologicamente a população brasileira (especialmente a geração dos anos 1980 e 1990) a desviar seu olhar para os porões da ditadura militar, nem sempre tão iluminados. O silêncio foi quebrado pelas vozes do fantástico elenco – Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro – que deu vida ao casal Eunice e Rubens Paiva.
No entanto, precisamos de muito mais para alcançar a indignação diante de um golpe de Estado que silenciou os vivos, impôs o medo, torturou os corpos e ocultou cadáveres tentando não deixar vestígios. Felizmente temos testemunhos que, por suas narrativas, indicam caminhos para as investigações nos arquivos da Polícia Política, e tantos outros órgãos que atuaram na repressão durante o regime militar, leia-se: Serviço Nacional de Informações (SNI), Conselho de Segurança Nacional e Comissão Geral de Investigações do Ministério da Justiça.
A festa do Oscar passou, o Carnaval acabou e veio a Quarta-feira de Cinzas anunciando as escolas de samba vencedoras em 2025. Silêncio: não há mais bandas, nem baterias. Apesar do tapete vermelho ter sido recolhido no Dolby Theatre, em Los Angeles, as luzes da memória ainda continuam acesas. Que os lugares dessa memória sejam demarcados em homenagem às vítimas, lembrando quem viveu ali, além de promover políticas públicas em prol dos direitos humanos. O brilho dourado da estatueta do Oscar conquistado pelo longa de Walter Salles deve iluminar esse território sombrio que exige a criação de memoriais por todo o País, a exemplo do que fizemos em São Paulo. Não basta apenas denunciar onde ficava o “matadouro” ou quais eram as técnicas de tortura, se não transformarmos cada “não lugar” em um espaço de memória e educação.
Ecoando por todo o Brasil em pleno domingo de Carnaval, a história da família Paiva entrou pelo atalho da memória colocando no pódio o cinema independente e a literatura de testemunho. Ao associar a história de Rubens Paiva (1929-1971) às lembranças de Eunice Paiva e seus filhos, o enredo do filme nos remete aos porões da ditadura, poluídos, ainda nos dias de hoje, pelo cheiro de cadáveres invisíveis. As garatujas inscritas nas paredes das prisões – marcas de um passado esmagado pelo autoritarismo – denunciam que outras tantas vidas ali estiveram, cujas histórias aguardam para ser reveladas.
O processo de lembrança está em curso, incentivando debates a partir das informações que ficaram armazenadas em nossas mentes, após a leitura do livro e/ou de assistir ao filme Ainda estou aqui. Agora, precisamos sair da posição ocupada no gargarejo da festa hollywoodiana, para ingressar no labirinto da memória em busca de verdades. Os desaparecidos ainda estão conosco aguardando a revelação dos seus corpos assim como os nomes dos seus carrascos. Essas descobertas, ocultadas propositalmente pelo poder político autoritário, podem “descortinar novos horizontes na proteção da dignidade humana”, segundo Tulio Novaes, em seu livro Memória Estética da Injustiça.
Naqueles tempos sombrios entre 1964 e 1985 – recorrendo aqui ao conceito de Hannah Arendt em seu livro Homens em Tempos Sombrios –, múltiplos segmentos da população brasileira vivenciaram situações-limite que exigiam solidariedade e respeito às diferenças. Não apenas Rubens Paiva, mas milhares de cidadãos e cidadãs acusados de subverterem a ordem, perderam a liberdade de ir-e-vir, que permite partirmos quando quisermos, e a liberdade de expressão, de falarmos o que quisermos. Quando se perde essas liberdades, outros tantos direitos são tragados pela violência ditatorial que obriga o perseguido político a viver “entre-mundos”, recolhido em sua liberdade interior para conseguir preservar seus pensamentos e o direito à vida.
A censura, a prisão e a tortura – impostas pelos perpetradores a tantos outros “subversivos” como Rubens Paiva – promoveram uma sobrecarga de emoções, dores e traumas até hoje incontroláveis. Assim como Eunice, outras tantas esposas e mães deixaram de sorrir por muitos anos, ao constatarem que seus companheiros haviam “morrido em guerra”. Ainda hoje, sinais desse trauma psicológico podem ser detectados pelos sentimentos de raiva, desesperança e tristeza profunda. Tanto assim que os familiares de desaparecidos políticos não conseguiram desativá-lo, pois ainda enfrentam um luto inconcluso. Diante da ausência do corpo, a dor persiste em consequência do silêncio imposto pelo sistema necropolítico da ditadura, que continua torturando aqueles que ficaram. Com violência premeditada, o governo civil-militar instaurado em 1964 fez uso do seu poder social e político para decretar quem poderia viver e morrer, distribuindo em doses homeopáticas o direito à liberdade.
O despertar da memória
Diante do silenciamento e apagamento da memória impostos por esse regime do “tipo” fascista, o duo livro/filme Ainda estou aqui foi suficiente para despertar a atenção da população brasileira para a história da repressão e dos desaparecidos políticos. Esse despertar pode (res)significar os fatos e contribuir para a construção de uma memória coletiva, em curso, validando centenas de testemunhos registrados pela Comissão da Verdade.
Atualmente, o Centro de Referências Memórias Reveladas implantado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, ao reunir documentação dos órgãos que atuaram na repressão durante o regime militar, fornece provas para o reconhecimento do direito à memória como um dos direitos fundamentais do homem. Ali estão reunidos os arquivos do Dops, do Serviço Nacional de Informações (SNI), do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Geral de Investigações do Ministério da Justiça.
Consultando o Arquivo Deops/SP – objeto de pesquisa de um projeto temático Fapesp que coordenei durante nove anos –, constatamos que nem tudo era registrado, mas o que restou foi fundamental para montar o quebra-cabeça, ainda que muitas peças estivessem faltando. Possivelmente, foram “ensacadas”, desovadas ao mar ou enterradas em valas comuns, como indigentes sem direito a uma lápide. Nem mesmo os atestados de óbito falsos conseguiram ocultar as marcas das torturas, reveladas nas fotografias anexadas aos prontuários e dossiês policiais.
Tais marcas e vestígios, desde que recuperados, nos remetem aos aparatos repressivos do Estado brasileiro comandado por militares que, após o golpe de 1964, tentaram controlar os corpos e as mentes daqueles que incidiam contra a ordem autoritária. Vigilância, censura e repressão, como já vimos em outras situações, dizem respeito à construção de uma lógica fascista direcionada para criar uma relação de sujeição da população ao Estado, que, através da censura, do medo à tortura e à morte, impõe disciplina aos corpos ao mesmo tempo que faz uma “lavagem das mentes”.
Para extrapolarmos a história singular de Rubens e Eunice Paiva, se faz necessário adentramos o mundo dos presos e desaparecidos políticos, vítimas da ideologia do etiquetamento (labelling approach) fundamentada na lógica da desconfiança. Assim foi sendo construída a imagem do deputado estadual Rubens Paiva como inimigo político, fundamentada na sua atuação como vice-presidente da CPI instaurada para investigar o financiamento eleitoral suspeito de parlamentares com uso de recursos do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipes), sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), suas propostas em defesa da reforma agrária, melhor educação, saúde e vida para os pobres, etc.
Assim como Rubens Paiva, outros tantos “subversivos” foram identificados com o “perigo vermelho”, fortalecendo a teoria conspiratória (re)construída pelo governo militar para evitar a instauração de um Estado comunista no Brasil. Aliás, esses argumentos são recorrentes na história política do Brasil desde 1924, data de instalação da primeira Polícia Política em São Paulo – o Departamento Estadual de Ordem Política e Social [Lei 2034, de 30.12.1924].
Era muito difícil escapar da vigilância diária daquele Big Brother, como previu George Orwell, com a lucidez política que marcou seu livro 1984, “o Grande Irmão está de olho em você” ou, melhor, “[…] continua de olho em você”. Daí a importância dos inventários dos prontuários e dossiês Deops/SP produzidos pelos pesquisadores do Proin – Projeto Integrado Arquivo do Estado/USP, sob a minha coordenação, todos publicados. Lembro que grande parte dessa documentação fundamentou a implementação do Memorial da Resistência no mesmo espaço onde funcionava o Deops/SP.
Importante lembrar que Rubens Paiva (1929-1971) foi perseguido, cassado, até ser preso no Rio de Janeiro em 20 de janeiro de 1971. Santista de nascimento e formado em Engenharia pelo Mackenzie, Rubens Paiva havia sido eleito deputado federal por São Paulo em outubro de 1962 e, após o golpe de 1964, foi cassado pelo Ato Institucional nº 1, quando se autoexilou na Iugoslávia e na França durante nove meses, retornando ao Brasil em 1970. Um ano depois, em 20 de janeiro de 1971, o ex-deputado era preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) e levado para o quartel da Força Aérea Brasileira (FAB).
Naquela mesma noite, foi entregue a militares do Exército, torturado e assassinado nos porões do DOI-Codi, instalado no prédio do 1º Batalhão de Polícia do Exército, no bairro da Tijuca. Estima-se que nesse “aparelho” foram executados 15 presos políticos e outros 33 tiveram seus cadáveres ocultados, desaparecidos até hoje. Eunice Paiva somente obteve o atestado de óbito em fevereiro de 1996, a primeira grande reparação à família e à memória de Rubens Paiva. Esse círculo incompleto do luto é cruel, pois além de ser um processo lento, implica perdas. Mesmo assim, a imagem dos desaparecidos permanece nas lembranças dos seus familiares, ainda que desfocada pelo tempo de espera para a revelação.
Somente em 16 de maio de 2012 , na mesma data em que entrou em vigor a Lei de Acesso à Informação, é que foi instalada a Comissão Nacional da Verdade, com a magna tarefa de promover o esclarecimento público das violações de direitos humanos por agentes do Estado na repressão aos opositores. Em 27 de fevereiro de 2014, o caso de Rubens Paiva foi apresentado em Audiência Pública organizada por essa comissão no Arquivo Nacional.
O legado do caso Rubens Paiva
O caso Rubens Paiva deve ser interpretado como um ponto morto no imenso universo carcerário arquitetado para servir ao regime que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Segundo o Quadro Geral da Comissão Nacional da Verdade sobre mortos e desaparecidos políticos, um total de 243 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado e outras 191, mortas por execução sumária ou por tortura, perpetradas por agentes a serviço do Estado. Desde que as cortinas do governo militar foram cerradas, a esperança equilibrista ainda dança na corda bamba sabendo que “o show de todo artista tem que continuar” – assim como eternizou Elis Regina com a música O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco. O filme Ainda estou aqui, dentre seus tantos méritos, recuperou através da história dos Paiva aquela imagem maquiada da nossa “Pátria, mãe gentil, onde ainda choram dezenas de Marias e Clarices”. Assim continua Eunice Paiva entre nós, apesar do seu falecimento aos 89 anos, depois de conviver por 15 anos com a doença de Alzheimer.
Mais uma vez, os holofotes iluminaram os porões fedorentos da ditadura, denunciando as injustiças duradouras. Que as lições deixadas por Eunice Paiva sejam lembradas para uma crítica política dos direitos; que os discursos “inventados de verdade” sejam desmitificados, servindo de alerta para a identificação das fissuras maléficas que fragilizam as democracias; que as ruas continuem sendo do povo, que, em nenhum momento, deve perder o seu direito à indignação.
(*) Maria Luiza Tucci Carneiro é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
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