A população do planeta, em sua imensa maioria, nasceu, cresceu e envelheceu vendo os Estados Unidos, a potência dominante do mundo, caminhando lado a lado com seus parceiros naturais no Ocidente, notadamente a Europa. A aliança gerada depois da Segunda Guerra Mundial solidificou-se no período de duelo rumo ao precipício com a União Soviética e seguiu firme depois da queda do Muro de Berlim. Entra governo, sai governo, as linhas divisórias da hegemonia global permaneciam inalteradas: a China estendendo sua rede no Oriente, a Rússia tentando preservar vizinhos submissos da era comunista e os EUA exercitando ascendência sobre a “sua” metade das nações europeias e os países das Américas. Não mais. No fim de fevereiro, um terremoto fez ruir pactos históricos e redesenhou o mapa das relações internacionais — tudo isso em pleno Salão Oval da Casa Branca, na frente de repórteres e fotógrafos do mundo inteiro.
O movimento das placas tectônicas começou com um telefonema de Donald Trump ao colega russo Vladimir Putin em que o fim da guerra na Ucrânia — iniciada com uma injustificada invasão de tropas da Rússia há três anos — foi discutido sem a participação dos ucranianos. Encerrada a “excelente conversa”, Trump chamou o presidente Volodymyr Zelensky de “ditador” e considerou favas contadas a manutenção pela Rússia dos 20% do território da Ucrânia que ocupa atualmente. A partir daí, o apoio incondicional da gestão de Joe Biden degringolou, levando na enxurrada não só Kiev mas toda a Europa Ocidental, empenhada em conter o ímpeto expansionista do gigante russo. O apogeu do rompimento viria na coletiva em que Trump, seu vice, J.D. Vance, e Zelensky pretendiam anunciar a assinatura de um acordo no qual Estados Unidos e Ucrânia explorariam em conjunto a riqueza mineral no subsolo ucraniano, uma isca de Zelensky que o governo trumpista prontamente abocanhou.

A entrevista descambou para um feroz bate-boca, com direito a dedos em riste e os americanos acusando o ucraniano de mal-agradecido. “Você está jogando com a terceira guerra mundial”, vociferou Trump. O presidente da Ucrânia foi embora de cara amarrada, sem assinar o acordo e sem provar o almoço comemorativo que seria servido, enquanto o mundo digeria a cena vexatória e inacreditável, transmitida ao vivo e em cores. “Ele pode voltar quando estiver pronto para a paz”, postou o presidente americano. Em seguida, mandou suspender a entrega de um pacote de ajuda americana em andamento, no valor de 1 bilhão de dólares.
Zelensky não demorou a recuar: qualificou o bate-boca de “lastimável” e, em carta conciliatória — que Trump leu em seu longo (99 minutos) e inflamatório pronunciamento ao Congresso na terça-feira 4 —, se disse disposto a “sentar-se à mesa das negociações” e buscar a paz “sob a forte liderança” dos Estados Unidos. Trump gostou, e as discussões devem ser retomadas nos seus termos — mas o estrago está feito. “Da forma como o acordo está colocado, a Ucrânia perde quase um quinto de seu território e o mundo ocidental perde quase 100% da sua credibilidade política”, diz Michael Clarke, professor do departamento de estudos de guerra da King’s College, em Londres. “Nesse contexto, a construção da aliança que dominou a política global por tanto tempo simplesmente deixa de existir.”

Reunidos às pressas em Londres, líderes de países europeus e do Canadá que integram a Otan, a aliança militar do Atlântico Norte, reiteraram seu apoio a Zelensky, que também estava lá, e a disposição de garantir e defender um acordo de paz justo para a Ucrânia — algo praticamente impossível sem a anuência da peça mais importante do tabuleiro, os Estados Unidos. Problema: neste momento, a Casa Branca parece tender muito mais a fazer as vontades de Putin, namoro que um carro alegórico no Carnaval alemão comparou ao pacto firmado entre Hitler e Stalin nos primórdios da Segunda Guerra. O sacrifício da Ucrânia serviria, segundo analistas, ao propósito maior da geopolítica trumpista, que é trazer a Rússia para seu lado no confronto com a China — este sim o embate crucial da batalha pela hegemonia global. Em outros tempos, esse jogo político até poderia acontecer, mas de maneira sutil, o que por si só impõe limites. Na era Trump, é tudo explícito, entre cotoveladas e pontapés, sem respeito aos movimentos de pesos e contrapesos.
França e Reino Unido estão propondo uma trégua parcial de um mês para negociação do término da guerra, durante a qual a ajuda militar continuará fluindo e ao fim da qual um acordo definitivo garantirá a soberania e segurança da Ucrânia na forma de uma força europeia. Nas palavras irônicas de Vance: “20 000 soldados de algum país aleatório”. Diante do realinhamento acenado por Trump, as grandes potências europeias se movimentam para aumentar os gastos e fortificar suas próprias defesas. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, elaborou um pacote de defesa que prevê empréstimos de 800 bilhões de euros e a criação de um fundo de 150 bilhões de euros para financiar as forças militares no continente. “A Europa enfrenta um perigo claro e presente em uma escala que nenhum de nós experimentou em nossa vida adulta”, alertou Von der Leyen. “O futuro de uma Ucrânia livre e soberana, e de uma Europa segura e próspera, está em jogo.”

Trata-se de um dos vários pontos de atrito na relação entre o presidente e os mandatários europeus, agravados agora pela confirmação da entrada em vigor, na terça-feira 4, de tarifas de 25% sobre as importações americanas do México e do Canadá, além da elevação das taxas contra a China. Verdade que um dia depois veio a decisão de isentar da cobrança, por um mês, os veículos produzidos por montadoras americanas e os produtos importados do México. Ou seja, ninguém sabe ainda até que ponto Trump está blefando — mas, pelo sim, pelo não, o bloco europeu (que, na visão dele, “foi criado para prejudicar os Estados Unidos”) é o próximo na fila do tarifaço.
Aliado da Ucrânia desde o início da guerra, em 2022, o governo Biden despejou mais de 180 bilhões de dólares em ajuda militar aos ucranianos (Trump, o rei dos exageros, fala em 350 bilhões). A suspensão das entregas deixa o país mais vulnerável aos ataques de drones, que compõem o grosso dos confrontos, com efeito direto na infraestrutura das cidades, e enfraquece ainda mais seu já reduzido poder de barganha. Suspender o envio de armas à Ucrânia tornou a paz “mais distante, porque só fortalece a mão do agressor, que é a Rússia”, disse o ministro francês para a Europa, Benjamin Haddad. Ruim para os ucranianos, bom para Putin e o.k. para os EUA sob nova — e até há pouco tempo inconcebível — direção. Vive-se, agora, um novo e frágil equilíbrio mundial.
Com reportagem de Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 7 de março de 2025, edição nº 2934
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