“Um ditador sem eleições”, “um comediante modestamente bem sucedido”, um fracassado com apenas 4% de aprovação, o responsável pela invasão de seu próprio país, um enganador que induziu os Estados Unidos a gastarem 350 bilhões de dólares em ajuda e um falso que apoia a continuação da guerra só para esse “trem da alegria” continuar. As pancadas de Donald Trump contra Volodymyr Zelensky são estarrecedoras tanto pelo teor de mentira quanto por repetirem algumas das acusações feitas pela Rússia, a ponto de porta-vozes de Vladimir Putin agradecerem.
Esclarecimentos obrigatórios: não houve eleições presidenciais porque o país está em guerra, impossibilitado de fazer um pleito em todas as regiões, inclusive as ocupadas pelo invasor russo. A aprovação a Zelensky realmente caiu para 57%, dos estratosféricos 90% que tinha quando, quase que sozinho, fez o vídeo famoso em que mostrava não ter intenção de deixar Kiev mesmo diante da iminente chegada dos russos – à qual os ucranianos heroicamente conseguiram resistir, impedindo a tomada da capital e a garantida execução do presidente valente e teimoso.
Por ter se transformado em símbolo da resistência, Zelensky virou um herói celebrado internacionalmente, exceto pela esquerda antiamericana, que comprava a propaganda russa de que os ucranianos na verdade eram pró-nazistas. Uma acusação especialmente maluca por envolver um judeu – embora ele próprio tenha brincado, em tempos menos implacáveis, que esta características “mal pega o vigésimo lugar na minha longa lista de defeitos”.
Agora, Trump e sua turma repetem muitos desses argumentos como se fossem verdades.
POTÊNCIA PARA POTÊNCIA
A história de Trump e Zelensky é complicada. Foi uma denúncia anônima dizendo que, num telefonema entre os dois, Trump, durante seu primeiro governo, havia pressionando o ucraniano a revelar negócios escusos de Joe Biden e seu filho Hunter envolvendo o país. Detalhe: Hunter Biden realmente conseguiu um empregão numa empresa de gás da Ucrânia pelo simples fato de ser, na época, filho do vice-presidente dos Estados Unidos – e, claro, abrir portas.
Zelensky ficou, na época, numa situação constrangedora: não podia desagradar Trump, de quem esperava garantias contra a cobiça russa, nem fritar um ex-vice-presidente que poderia vir a ser eleito, como de fato aconteceu. Foi esse caso que provocou o primeiro impeachment de Trump, rejeitado pelo Senado por causa da maioria republicana.
Teriam mágoas desse tempo influenciado no incrível ataque de Trump contra Zelensky? Haveria segredos que nunca vieram a público dessa época? Seria uma forma de forçar um acordo cedendo o controle de terras raras e outros minerais críticos, como o presidente americano quer fazer? Ou Trump teria simplesmente resolvido ser pragmático e fazer um acordo com a Rússia, de potência para potência, escanteando a Ucrânia?
É verdade que nenhum conhecedor realista do que acontece no campo de batalha esperaria que a Rússia devolvesse os 20% de territórios da Ucrânia que tomou – sem falar na Crimeia, anexada sem tiros.
Mas causa espanto a “técnica de negociação” em que Trump já foi entregando tudo aos russos, inclusive uma garantia de que a Ucrânia nunca pertencerá à Otan – e pouco ou nada para garantir que a Rússia de Vladimir Putin não se sentirá incentivada a engolir o resto da Ucrânia.
IMPROVÁVEL HERÓI
Zelensky tem uma trajetória quase inacreditável: era um humorista que fez papel, numa série, de um professor de história que se revolta contra a corrupção generalizada e acaba eleito presidente. Ou seja, já interpretou a si mesmo na ficção. A vida real o colocou na posição de improvável herói da resistência, uma figura rara no panorama político atual. Baixinho, com uma expressão que lembra o Mr. Bean do humorista inglês Rowan Atkiinson, com roupas em estilo militar para acentuar que o país está em guerra, ele aperfeiçoou o inglês para se comunicar melhor – e o ucraniano também, já que originalmente sua primeira língua é o russo. Virou um fenômeno, embora o tempo e a guerra indefinida tenham provocado um desgaste natural.
Pintado pelo vilão Putin como um neonazista viciado em drogas, agora está sendo vilipendiando pelo presidente dos Estados Unidos. E também por Elon Musk, que acusou Zelesnky de comandar uma “máquina corrupta alimentada pelos corpos de soldados ucranianos”. De onde saiu essa maluquice? Querer a paz é muito nobre, mas a paz ao preço da perda da independência é desonrosa.
Ontem, Trump mandou cancelar, na última hora, uma entrevista do presidente ucraniano e do enviado especial americano, general Keith Kellog. E o assessor de Segurança Nacional, Mike Waltz, disse que Zelensky deveria “baixar o tom” das declarações sobre Trump e assinar logo o acordo sobre as terras raras, “uma incrível e histórica oportunidade” de investimentos no recursos naturais da Ucrânia. Mais: “Os insultos ao presidente Trump, francamente, são inaceitáveis” – uma referência à primeira crítica pública de Zelensky, quando disse que Trump vive num “espaço de desinformação” criado pelos russos.
O confronto assumiu um ponto simplesmente explosivo e o ex-humorista Zelensky está bem no centro dele.
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